Frases e palavras de impacto de Herberto Helder!

Os Animais Carnívoros Dava pelo nome muito estrangeiro de Amor, era preciso chamá-lo sem voz - difundia uma colorida multiplicação de mãos, e aparecia depois todo nu escutando-se a si mesmo, e fazia de estátua durante um parque inteiro, de repente voltava-se e acontecera um crime, os jornais diziam, ele vinha em estado completo de fotografia embriagada, desco- bria-se sangue, a vítima caminhava com uma pêra na mão, a boca estava impressa na doçura intransponível da pêra, e depois já se não sabia o que fazer, ele era belo muito, daquela espécie de beleza repentina e urgente, inspirava a mais terrível acção do louvor, mas vinha comer às nossas mãos, e bastava que tivéssemos muito silêncio para isso, e então os dias cruzavam-se uns pelos outros e no meio habitava uma montanha intensa, e mais tarde às noites trocavam-se e no meio o que existia agora era uma plantação de espelhos, o Amor aparecia e desaparecia em todos eles, e tínhamos de ficar imóveis e sem compreender, porque ele era uma criança assassina e andava pela terra com as suas camisas brancas abertas, as suas camisas negras e vermelhas todas desabotoadas.

Por Herberto Helder

⁠Minha cabeça estremece com todo o esquecimento. Eu procuro dizer como tudo é outra coisa. Falo, penso. Sonho sobre os tremendos ossos dos pés. É sempre outra coisa, uma só coisa coberta de nomes. E a morte passa de boca em boca com a leve saliva, com o terror que há sempre no fundo informulado de uma vida. Sei que os campos imaginam as suas próprias rosas. As pessoas imaginam os seus próprios campos de rosas. E às vezes estou na frente dos campos como se morresse; outras, como se agora somente eu pudesse acordar. Por vezes tudo se ilumina. Por vezes canta e sangra. Eu digo que ninguém se perdoa no tempo. Que a loucura tem espinhos como uma garganta. Eu digo: roda ao longe o outono, e o que é o outono? As pálpebras batem contra o grande dia masculino do pensamento. Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra. Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.

Por Herberto Helder

⁠Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, quando alguém morria perguntavam apenas: tinha paixão? quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão: se tinha paixão pelas coisas gerais, água, música, pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos, pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória, paixão pela paixão, tinha? e então indago de mim se eu próprio tenho paixão, se posso morrer gregamente, que paixão?

Por Herberto Helder

⁠- Era uma casa - como direi? - absoluta. Eu jogo, eu juro. Era uma casinfância. Sei como era uma casa louca. Eu metias as mãos na água: adormecia, relembrava. Os espelhos rachavam-se contra a nossa mocidade.

Por Herberto Helder

Sobre um Poema Um poema cresce inseguramente na confusão da carne, sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto, talvez como sangue ou sombra de sangue pelos canais do ser. Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência ou os bagos de uva de onde nascem as raízes minúsculas do sol. Fora, os corpos genuínos e inalteráveis do nosso amor, os rios, a grande paz exterior das coisas, as folhas dormindo o silêncio, as sementes à beira do vento, - a hora teatral da posse. E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, a miséria dos minutos, a força sustida das coisas, a redonda e livre harmonia do mundo. - Em baixo o instrumento perplexo ignora a espinha do mistério. - E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

Por Herberto Helder